quinta-feira, 18 de março de 2010

Um cábula de génio
Camilo estudante da Politécnica

[Este texto, de Artur de Magalhães Basto, é retirado do Porto Académico, n.º único de 1937, p. 7.
As citações de Camilo não referenciadas são do livro Cavar em ruínas (1867). Um extracto mais extenso pode ser lido numa página sobre a história do ensino da química em Portugal.
A "Politécnica" onde Camilo Castelo Branco estudou, ou antes cabulou, é evidentemente a Academia Politécnica do Porto, antecessora da Faculdade de Ciências.]

"Ó meu querido professor, eu sou dos que antigamente desceram das regiões transmontanas naqueles machos que o progresso tirou da circulação para dar lugar a outros maiores!"
C. C. Branco - A mulher fatal

É de crer que fosse efectivamente montado num macho que Camilo Castelo Branco aos 18 anos, aí por começos de 1843, entrou no Porto, quando a família houve por bem mandá-lo sair de Vilarinho de Samardã - tantas diabruras já por lá ele praticara. Ficava-lhe em Friume a mulher - sim, a esposa! - a Joaquina Pereira, ingénua rapariguita com quem casara, aos 16 anos, e que cedo abandonaria este mundo de falsidades e desilusões.

Mas era em Vilarinho que o nosso Camilo deixava, lavada em lágrimas, o seu grande amor daquele tempo - a Maria do Adro.

No dia 29 de Setembro de 1843 Camilo Castelo Branco estava em Lisboa - visto que abria nessa data o seu sinal no cartório dum tabelião, daquela cidade - mas já em 12 de Outubro se encontrava outra vez no Porto, onde fixou residência, disposto ao que parece, a formar-se em medicina.

Que estudos tinha ele feito até então ?

Tudo quanto Camilo sabia - refiro-me à ciência que tem de ser aprendida nos livros - devia-o a dois sacerdotes: ao cunhado de sua irmã Carolina, o Padre António de Azevedo - com quem vivera durante dois anos na pitoresca aldeola já referida, do concelho de Ribeira de Pena, sobranceira ao Corgo, entre as serras do Mesio e do Alvão, e que se chama Vilarinho de Samardã; e ao Padre Manuel da Lixa, considerado professor de latim, "sujeito de não vulgar lição, pregador de fama", cujas aulas frequentara, durante durante algum tempo, no Lugar da Granja Velha, freguesia de Santa Marinha - do concelho de Ribeira da Pena como a aldeia de Samardã.

Tinham sido esses dois santos homens os seus professores. Mas desde já deve dizer-se, em abono deles, e do seu ensino que o aluno, sempre que lhe era possível, fugia de casa e dos estudos, e passava o dia, de clavina e polvorinho, atrás das galinholas, pela serra; ou de cajado de pastor a guardar rebanhos, pelos vales; ou "sentado nas espinhas dos alcantis fragosos, sempre sozinho, cismando sem saber em quê, engolfada a vista na garganta dos despenhadeiros".

Estava de regresso ao Porto, em princípios de Outubro. No dia 12 já o vemos a fazer exame de Latim e Francês no Liceu Nacional. No dia 13 fez o de Filosofia Racional e Moral. Em Latim triunfou nemine discrepante; nas duas outras disciplinas foi aprovado milagrosamente com um R[1].

Munido das certidões respectivas, no dia 16 matriculou-se na Escola Médica, no 1º ano de Anatomia. No último dia do mesmo mês abriu matrícula na cadeira de Química, da Academia Politécnica.

E começou o primeiro ano dos estudos superiores de Camilo...

"Eu não tinha ainda 19 anos - asseverou ele um dia; e, naquela idade, dou palavra de honra que era estudante sem compêndios, e o mais ignorante que podia ser um rapaz que entranhadamente execrava livros, e amava o sol e tudo quanto ele cobria, exceptuados os livros e os sábios".

Era seu professor de Química o frade egresso Joaquim de Santa Clara de Sousa Pinto. Só à hora da aula, à porta da Academia, quando o avistava ao longe, é que o aplicado estudante se lembrava que ainda não estudara a lição, e passava apressadamente a vista pelo compêndio, que "generosos condiscípulos" lhe emprestavam! Maior inimigo da Química não o havia no curso, e nem mesmo seria fácil de encontrar neste planeta que habitamos!

Quantas vezes ele fugiu da aula, de cócoras, às recuadas, quando o sol de Deus lá de fora "estava incitando à rebelião". Não podia resistir à tentação da liberdade! "Com que tristeza eu via o sol e invejava a minha vida lá das serras, donde viera estudar o sesquioxido de ferro e o bicarbonata de potassa naquelas frias salas do convento da Graça!" (aliás, do Colégio dos Meninos Órfãos da Graça, que estava a ser envolvido pela Academia em construção). Apaixonado pelo sol, e também pelas mulheres - e de mais a mais sem compêndio... Camilo chegou ao dia do exame quasi tão ignorante de Química como antes de se maticular em tal disciplina.

No entanto, atreveu-se a tentar a sorte: foi tirar ponto para o acto[2]. Saiu-lhe o "Kermes mineral" e qualquer coisa mais. Não fazia a mínima ideia dessas matérias. Mas arranjou um livro emprestado, e foi para casa estudar...

Nesse tempo morava Camilo no último andar dum autêntico pardieiro, em completo estado de ruína, sito na fétida e lamacenta Rua Escura. Essa casa está hoje reformada. Faz esquina para as ruas da Bainharia e do Souto, tem em frente a Rua dos Pelames, e nas traseiras os fundos das casas da Rua da S. Sebastião, numa das quais estava naquele tempo o Aljube. "Eu que descera das penadias transmontanas, perfumadas das essências das matas altas, vestidas do rosicler das auroras, da púrpura vespertina dos crepúsculos, de moitas de rosmaninhos, e resvalara à sargeta da Rua Escura!..."

Camilo subiu vagarosamente ao seu quarto, e do quarto passou ao telhado, "com o compêndio e uma viola". "A mulher que eu amava - contar-nos-ia ele mais tarde - vivia numa trapeira da Rua do Souto, e estava lá a mondar mangericões. Vi-a, sentei-me na espinha do telhado, e, ao arpejo da viola chuleira, cantei-lhe umas trovas, que eram a nagação de toda a química..."

Mas a vizinha era esquiva; pelo menos, não ligava a cantigas.

Como pouco depois assumasse ao telhado o estudante que a sorte emparelhara com Camilo "para a hecatombe do dia seguinte", resolveram estudar... Mas estudaram tanto, ou sabiam tão pouco, que nem sequer conseguiram descobrir em que página do livro estava a matéria do ponto!

Às nove da noite Camilo resolveu não fazer acto e foi ouvir música à porta do quartel General!...

Seja ele agora mesmo, o grande romancista, a narrar o mais que se passou:


"Estava eu embevecido na ária da Norma, quando senti no ombro pousar-me amigável mão.

- O senhor por aqui?! - perguntou-me alguém.

Voltei-me e vi o meu sábio condiscípulo (Francisco Pereira) Amorim de Vasconcelos, o estudante premiado, que, naquele tempo, devia orçar pelos trinta anos, e já era administrador da botica do hospital da Trindade, se bem me lembro.

- Por aqui na véspera de ponto?! tornou ele.

- É verdade...

- Já estudou?

- Nada.

- Então?!

- Não vou fazer acto.

- Porque não sabe o ponto?

- Justamente.

- Venha comigo, que eu ensino-lho. Venha, que é uma desgraça perder um ano!

E levou-me pelo braço.

Escutei-o até às duas da madrugada. Quando saí sabia o ponto, sabia os rudimentos da Química, sabia a história e a filosofia da ciência, conhecia Berzelins, Gay Lussac, Orphila, e não sei quê mais.

Adormeci como um justo e acordei com a cabeça mais pesada que uma igual porção do Kermes do ponto.

Soou a hora do acto. Já de antemão os condiscípulos me davam pêsames: dizia-se que eu, além de ser um parvo quimicamente falando, tinha quarenta e oito faltas, afora vinte e duas abonadas, sete negas e cinco fugidas.

O sr. Santa Clara estava na presidência com ar fúnebre. O meu consócio do holocausto entrou como moribundo que não pudesse morrer sem fazer acto de química. Eu ia alegre com a minha ciência e três cálices de licor de canela.

Que acto eu fiz! Desenruguei a fronte do lente, enchi de júbilo os arguentes, espantei os condiscípulos e fui aprovado nemine discrepante. E o que mais é, salvei o meu condiscípulo, que tinha sido menos boçal do que eu, e frequentara exemplarmente... os bancos da aula. Se eu não fora reprovado, fora escandalosa a reprovação do outro. Deram-lhe um R, que ele agradeceu com lábios, não maculados deuma só palavra escorreita em matéria de Química.

Amorim abraçou-me, levantou-me à altura da sua óptima cabeça e disse-me:

- Se não fossem as negas e as fugidas, o prémio devia ser seu!"

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Fiquemo-nos por aqui... Nem mais uma palavra se deve acrescentar.

Não parece que essa página risonha, colorida e viva de recordações da mocidade do imortal Romancista - o mais genial dos Politécnicos portuenses - foi escrita expressamente para o presente número único do Porto Académico?!

Pelo arranjo e pela cópia

A. DE MAGALHÃES BASTO
Antigo Professor da Faculdade de Letras



[1] Os júris de exame eram constituídos (geralmente?) por três professores. Cada um deles votava A(provado) ou R(eprovado); se todos os examinadores votassem A o examinando estava aprovado nemine discrepante (sem ninguém discordar); se tivesse só um R, estava aprovado simpliciter; com dois ou mais R's estava evidentemente reprovado

[2] “Acto” era o exame; o “ponto” era a matéria, tirada à sorte, sobre a qual o acto incidiria.

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